Promotor
Câmara Municipal de Loulé
Sinopse
[no âmbito da Bolsa de Apoio ao Teatro 2020]
'Dois perdidos no horror elíptico da sobremodernidade' baseia-se naquela que aparenta ser uma inevitabilidade da condição humana: a espera e a fé (ou a dúvida?).
Assumidamente inspirada na primeira e mais famosa peça de Samuel Beckett (À espera de Godot, um dos textos mais representativos do Teatro do Absurdo), esta criação adquiriu a sua própria identidade através de uma outra dramaturgia, também ela pós-apocalíptica, contextualizada num outro espaço-tempo, com outras questões sociais, igualmente meritórias de um jogo tão absurdo quanto o da não-acção em Godot.
Carolina Santos situa estes Dois perdidos num aeroporto vazio, pós-trauma (apocalipse, epidemia?), e altera a lógica das personagens, que pertencem a um novo universo com memória recente de um turismo em massa, de fenómenos de gentrificação e acentuação de assimetrias sociais, de uma era em que a igualdade de género e as alterações climáticas estão na ordem do dia, em que se discutem novamente fronteiras e persiste o modelo capitalista.
Aqui, quem espera não são vagabundos. São trabalhadores precários de um certo serviço de transferes que aguarda a chegada de um determinado cliente há meses, anos? no hall do aeroporto, que pode ser o de Faro, pela nossa referência geográfica, ou qualquer outro no mundo: são todos não-lugares1. Quem acaba por chegar não é o mestre e seu servo, mas sim um homem e uma mulher, estrangeiros, certamente de uma casta superior, presos por uma corda umbilical que os impede de seguir com as suas vidas. E o moço de recados, que podia ser um portador de boas-novas, é um jovem imigrante que tenta a sua sorte, mas volta a sair sempre por onde entrou.
Num espaço asséptico, reconhecível pela maioria, trabalhamos a presença antes da palavra, aquilo que é dito pelo corpo e por composições visuais mais explicitamente do que pelo texto. Associando a ideia de não-lugar de Marc Augé à chamada globalização, e ao vazio de sentido a que nos expomos por raramente questionarmos a velocidade das nossas vidas, encontramos a base dramatúrgica para o processo criativo, interrompido em março inesperada e coincidentemente! por uma pandemia avassaladora provocada pelo novo Corona-vírus.
Impôs-se o confinamento por tempo indeterminado. E aos poucos retomamos a normalidade.
Mas qual normalidade?
A impressão de que este projecto iria ser impactante por abordar algumas das feridas abertas na actualidade pré-COVID 19 já se fazia sentir em cada ensaio. Agora, e depois de reduzidos à não-acção, ao isolamento social, sem garantias económicas, e sujeitos a um desgaste psicológico intenso pela falta de rotina, de espaço, de interação social e novidade, acreditamos que Dois Perdidos no horror elíptico da sobremodernidade ganha redobrado sentido.
Porque somos todos uma espécie de Vladimir e Estragon. Esperamosmuito.
Que a fé num futuro melhor nos ajude a viver cada dia como se fosse o último desta pandemia.
1 Editado pela primeira vez em 1992, Não-lugares, para uma introdução da antropologia da sobremodernidade (surmodernité), de autoria de Marc Augé, introduz o conceito de não-lugares para se referir a lugares transitórios que não possuem significado suficiente para serem definidos como um lugar. Por exemplo, um aeroporto, uma estação de comboios, o supermercado. Trata-se da obra mais conhecida do autor e com profunda relevância na antropologia urbana e nas artes performativas e estudos do espaço (arquitetura e urbanismo).
Interpretação: Filipa Rodrigues, João Caiano, Pedro Paulino, Renato Brito, Tata Regala / Encenação: Carolina Santos / Assistência de encenação: Mariana Teiga / Dramaturgia e espaço cénico: Carolina Santos, com inspiração no universo godotiano, de Samuel Beckett / Música: excertos de Picea, Fraxinus (de Bartholomäus Traubeck), Changing Time 1, Deconstructed Image 2 e Processional (de Tigran Hamasyan) / Sonoplastia, construção cenográfica e grafismo: Marco Martins / Figurinos: Ana Karina / Desenho de luz: Valter Estevens / Direção de Produção: Patrícia Amaral / Apoios: Câmara Municipal de Loulé (Cineteatro Louletano), Algarpalcos, Gostomatic, Loulecópia
Preços
Preço único: 5 € (sem descontos aplicáveis)